Saturday, March 22, 2014

O médico jurado de morte ( Contos de Gerson Salvador)

O médico jurado de morte ( Contos de Gerson Salvador)
Neurosurgery Blog

 O médico jurado de morte

Autor: Gerson Salvador

Com o bisturi entre os dentes saiu João Pirata da residência de cirurgia. Com fome de mundo deixou o Hospital da Universidade onde recebera toda a sua formação. Aprovado com excelente desempenho em concurso para médicos da prefeitura foi preciso ao escolher a sua vaga: Jardim dos Amores.
Jardim dos Amores! Ainda havia outras vagas. Pirata já tinha fama de não ser muito certo. Tantos lugares para escolher e optou pela região mais violenta da cidade, onde se esfaqueava a troco de um olhar enviesado, onde o crime criava estatutos e comandava o território.
- É isso mesmo! Eu fiz quatro anos de cirurgia porque gosto! Vou trabalhar pra prefeitura lá no Jardim dos Amores, não vai faltar quem operar! Não era José profeta, mas calculava.
Assumiu o seu posto. Realmente não faltava trabalho. Sempre que chegava ao Pronto Socorro tinha ao menos três cirurgias. Dia de festa! Ao centro cirúrgico!
Não demorou muito tempo galgou posto de chefia de plantão. E sua fama correu a quebrada. O homem é bruto, mas resolve na faca.
Corre notícia na emergência.
Tiroteio. Chefe do morro foi baleado. Cabeção está vindo pro hospital. A equipe fica nervosa. Sabe que às vezes a tensão da rua chega à sala operatória.
Chega o homem banhado de sangue. Levado à emergência. Dois homens o resguardam. Havia volumes em suas cintas. Ninguém pediu para ver os documentos.
Vias aéreas sem obstrução.
Movimentos respiratórios espontâneos. Grita.
A casa vai cair se não der tudo certo. Vai sobrar bala!
Pressão elevada. Pulsa. Acelerado.
Consciente e orientado. Sem alterações neurológicas.
Ferimento por arma de fogo em coxa esquerda. Perto da virilha.
Chega Pirata.
Administram oxigênio, pegam acessos venosos, corre soro fisiológico.
Correm para a sala de operação.
O impaciente repete que a casa vai cair pra geral.
Tem que operar.
É a primeira vez que lhe vão passar a faca.
A maca do impaciente está na sala operatória.
O anestesista não chega.
O pulso sobe. A pressão cai.
Transfunde sangue! 
Pirata pega uma compressa. Enxuga aquele sangue todo. Ar condicionado quebrado sua em bica. Faz uma anestesia local e passa o bisturi para explorar a ferida.
- Ai seu filho da puta. Dói pra caralho. Se eu perder minha perna você tá fodido, tá fodido na minha mão. Vai ficar pequeno. Eu sou o dono do morro.
- Cala a boca caralho. Você manda na casa do cacete. Na sala de cirurgia quem apita sou eu. Estou tentando salvar a sua vida, se você não deixar vai sangrar até morrer. Você entendeu. Quem manda nessa porra de sala aqui? Entendeu?!
Não entendeu. Pulso subiu, pressão caiu ficou inconsciente. 
Vai morrer?
Chegou o anestesista. Intubação. Cateter em veia central. Droga. Pressão normal.
Pirata encontrou a veia femoral rasgada… suturada… perfeita. Tirou a bala e colocou num vidrinho.
Paciente para a Unidade de Terapia Intensiva.
A equipe de certa maneira torcia para que não saísse vivo. Sabia que se ele saísse Pirata estava morto. Essa cara nunca ouviu desaforo nem de polícia. Pirata torcia que desse tudo certo. Não queria que o paciente que operou morresse assim. Não gostava de fracassar. Medo não tinha. Não era mesmo muito certo.
Soube-se que no segundo dia de internação, o homem em muito melhores condições fugiu do hospital. Correu notícia.
Fizeram bolão para saber que dia matariam Pirata.
A chefia sugeriu que se afastasse por tempo indeterminado.
- Eu vim aqui foi pra operar. Põe o próximo na sala.
Maria, técnica de enfermagem que morava na comunidade, avisou a todos que correu na boca pequena que Cabeção invadiria o Hospital, dizia que tinha conta a acertar com doutor Pirata.
Comoção.
Pirata, não fica no Hospital!
- Eu sou homem, não tenho medo de homem. Vim aqui pra operar. E põe o próximo na sala!
A polícia foi avisada, disse que não entrava no Jardim dos Amores com o contingente do dia.
A funerária encostou o carro.
Pirata opera, como se amanhã não houvesse.
Sai da sala de operação.
- Ei, você é o doutor Pirata?
- Eu mesmo!
Chegou a encomenda! Se aproxima um rapaz jovem, magro, de camiseta. Um volume em sua cintura. Um, dois três passos. Põe a mão na cintura. Levanta a camisa. Se aproxima de Pirata. Puxa o volume… O médico arregala os olhos, esbugalha.
- Isso aqui é pelo que você fez com o Cabeção.Toma!
Entrega um pacote ao médico e vai embora.
Pirata corre para a sala dos plantonistas. Tenta desembrulhar o pacote de papel de pão. Dava pra ver até as letrinhas azuis. Servimos bem para servir sempre. Gratos pela preferência.
Dentro do embrulho tinha quase meio quilo de ouro: gargantilhas, pulseiras, anel e relógio da hora. E um bilhete:
Dr Pirata vá desculpando as palavras. Valeu salvar minha vida. Devo essa.Quem mexer com o senhor mexeu cum nóis. Aproveite o presente. De seu irmão: Cabeção.

xxxxxx

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Dr. Gerson Salvador
Médico infectologista Universidade de São Paulo
Disciplina de propedeutica médica Faculdade de Medicina da USP
Médico da divisão de Clínica Médica Hospital Universitário da USP

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